
O lugar de mulher é no lar. O trabalho fora de casa masculiniza.
(Revista Querida, 1955)¹
Crescendo numa família evangélica e frequentando a igreja obrigada, sempre me mexia no banco quando ouvia coisas como ‘a mulher sábia edifica sua casa’, ‘a mulher deve ser submissa ao homem’, ou, ainda, algo mais ‘moderninho’ como ‘por trás de um grande homem há sempre uma grande mulher’.
Por ficar extremamente revoltada com tais afirmações horrendas, nunca havia me imaginado na ocupação restrita e perene de dona de casa. Confesso que não entrava na minha cabeça saber que existiam mulheres que escolheram esse caminho pra sempre. E o mais curioso é que, embora uma parte do machismo queira mulheres donas de casa, outra parte nos leva a desprezar os cuidados domésticos por serem considerados menores.
Ainda bem que as coisas mudam e que a gente tem a capacidade de aprender. Com algum amadurecimento, entendi a importância e a carga do trabalho doméstico, e também ganhei o conhecimento de quem ocupa esse cargo de dona de casa junto a outros. Foi aí que comecei a dar o devido valor e reconhecimento pra ele, para quem o faz e entendi que - nem sempre - estar em casa é sinônimo de submissão.
Ainda assim, esse caminho envolve muitos riscos e pode ter uma conta bem cara a ser paga pela mulher. Apesar de as redes sociais popularizarem vídeos de esposas saltitantes e felizes com suas vidas bancadas pelos maridos, a realidade geralmente não é tão animadora quanto nos vídeos de 30 segundos do TikTok. Quando o homem decide puxar o tapete, os saltinhos viram tombos feios.

Entendendo as hashtags
De um lado, estão as #esposastradicionais ou #tradwives. Elas fazem coisas como acordar - ou dizem acordar - às 5h para fazer e assar o pão que estará na mesa do café da manhã e cuidar dos filhos e do marido com todo apreço. Para elas, trabalho doméstico não remunerado é sinônimo de amor.
É um estereótipo extremamente machista que remonta o ideal da família estadunidense da década de 50, com papéis de gênero muito bem delimitados, reforçando um ideal de família excludente, que só pode ser composto por um homem provedor, uma mulher edificante e filhos.
Do outro lado, estão as #esposastroféu ou #trophywives. Arrisco dizer que essas se deram um pouco melhor na vida por não estarem trabalhando de graça. Elas têm como prioridade o cuidado com seu corpo, afinal, um troféu é conquistado para ser exibido.
Devem estar sempre lindas, para isso, têm noites tranquilas de sono com tempo de sobra, pois não precisam acordar cedo pra trabalhar. Contam com funcionários em casa para fazer o trabalho doméstico, que elas administram. Suas rotinas são preenchidas com treino, consultas para se manterem bem cuidadas, horas de lazer e muito amor e leveza para dar aos seus maridos, que já têm problemas suficientes no trabalho e só precisam de carinho ao chegarem em casa.

Apesar das diferenças, os dois lados dividem o mesmo machismo patriarcal, o conservadorismo e o trabalho doméstico como uma responsabilidade da mulher, mesmo que no âmbito administrativo, como no caso das esposas troféu. Afinal, claro, tudo é política, mesmo pra quem não quer assumir ou para quem diz que sua vida não tem nada a ver com isso.
Mãos dadas com a ultradireita
O fenômeno das esposas tradicionais e troféu não veio do nada e não representa apenas um estilo de vida vintage ou diferenciado. Sempre que avançamos em alguns aspectos, vemos uma tentativa de retrocesso.
Tudo bem se a mulher escolher ficar em casa com os devidos resguardos, mas esse tipo de arquétipo de família que vem sendo vendido é economicamente irreal para a maioria da população e está de mãos dadas com os movimentos ultraconservadores, que o utilizam como propaganda de um ‘mundo melhor’.
Um exemplo disso é o partido de ultradireita alemão Alternativa para Alemanha (AfD). Uma matéria da DW diz que ‘a AfD usa em suas campanhas imagens que refletem ideias também promovidas - mesmo que inconscientemente - pelas tradwives. Por exemplo, uma publicação do partido no Instagram faz uma comparação entre "feministas modernas" e "mulheres tradicionais", por meio do uso de estereótipos negativos, como atratividade, escolhas de carreira e valores’.

E antes que digam que isso é recalque 💅
Conservadoras dirão que esta reflexão é papo de feminista que quer destruir a família ou de ‘encalhada’ que ficou sem marido, mas não podemos esquecer de um detalhe importante. Se você não for casada com um marido bilionário, como da tradwife mais famosa do TikTok, Ballerina Farm, é muito provável sair em extrema desvantagem quando o conto de fadas virar filme de terror. Ou entrar num ciclo abusivo, que, com frequência, pode envolver violência doméstica, patrimonial e psicológica.
E é muito preocupante ver jovens mulheres desejando este ideal. Tudo bem, sabemos que nem todas vão ter o estilo de vida como das mais famosas e é exatamente por isso que o preço de abdicar da própria independência é altíssimo. Por exemplo, o que acontece em caso de separação ou óbito dessa fonte provedora?
Segundo matéria do G1, ‘pela lei, mulheres que não se inseriram ou se afastaram do mercado de trabalho para se dedicar ao lar podem ter direito ao pagamento de até cinco anos de pensão em casos de divórcio, mesmo que a união não tenha gerado filhos’.
Todavia, tudo depende do caso, da disposição e possibilidade de reivindicar esses direitos e, claro, de poder. É por isso que é melhor evitar chegar nesse estágio. Como disse a
em Um teto e uma grana toda sua, ‘Autonomia financeira nos permite ter mais controle da nossa vida e nos poupa de humilhações e constrangimentos’.Mas já que esse ideal é tão problemático, por que ele está tão popular nos últimos anos?

Voltemos para a política de novo
Em alguns momentos da história, em muitos países, as mulheres saíram de casa pra trabalhar e contribuir com a renda familiar. Vamos combinar que o modelo da família heteronormativa branca estadunidense da década de 50 não era sustentável a longo prazo. Tanto é que não durou muito. O grande problema é que foi adicionada uma carga de trabalho fora para as mulheres enquanto a carga do doméstico não foi redistribuída.
Falando do Brasil contemporâneo, segundo o IBGE ‘Mulheres brasileiras dedicam quase o dobro de tempo que os homens aos afazeres domésticos e ao cuidado de pessoas. São 21,3 horas semanais, contra 11,7 horas, em média’.²
Ao se dividir entre o trabalho externo, as horas de transporte e o cuidado com a casa e com as pessoas da família, algumas mulheres estão ficando apenas com a última parte.
Por fim, não adianta culpar o indivíduo
Casos como das esposas tradicionais e troféu, por gerarem muito engajamento, sempre vêm com muito apoio ou muito hate. Mas o buraco é sempre muito mais embaixo, e só políticas públicas podem tapar esse poço. Estamos todos debaixo de uma estrutura e nenhuma escolha - quando ela realmente existe - é totalmente individual.
Nesta semana, vi o documentário da Eliza Samudio, na Netflix. Conheci um lado da vítima que não me lembro de ter visto na mídia sensacionalista à época do crime: uma jovem que queria ser goleira de futsal, mas que, infelizmente, não conseguiu. Ao sofrer violência do goleiro Bruno, ela procurou a justiça, falou grávida em programas de TV o que estava passando, mas nem isso foi suficiente para evitar sua morte trágica, em 2010.
Já 2023 foi o ano com maior número de feminicídios no Brasil. Dados analisados a partir de 2015, quando a legislação sobre esse crime foi criada, indicam 1.463 casos de mortes violentas de mulheres³.
O caso de Eliza e de outras milhares de vítimas que morrem de forma violenta todos os anos são os extremos. Porém, não esqueçamos que a violência também está nas sutilezas, na manipulação, nas ordens disfarçadas de cuidado, no discreto cárcere que se cria, dia após dia, com disparidades de poder e que são tudo menos amor.
Comecei esta edição com uma frase coletada de uma lista com várias outras citações de revistas da década de 50, que seriam inimagináveis - será? - em revistas atuais de grande circulação. Em contraponto, termino com algo mais bonito e esperançoso, duas citações de Bell Hooks:
‘No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover contra a dominação, contra a opressão. No momento em que escolhemos amar, começamos a nos mover em direção à liberdade, a agir de formas que libertam a nós e aos outros (...) Não pode haver amor sem haver justiça’.
Que amemos e sejamos amadas, de fato.
Referências:
¹: Folha de São Paulo
²: Politize!
📺Para assistir
Impossível não lembrar da série Mad Men ao falar deste assunto.
Fica a dica dessa série incrível, disponível na MGM+ pelo Prime Video.
🎧Para ouvir
Esse episódio da Ilustríssima conversa traz Bela Gil, que transformou suas pesquisa de mestrado no livro ‘Quem vai fazer essa comida?’ para falar de trabalho doméstico.
🎗️Lembrete: Caso você tenha perdido minha última edição, leia aqui:
Por hoje é só.
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Com carinho,
Angela Lemos
Assisti ontem ao filme “O Sorriso de Mona Lisa”, que é exatamente os EUA da década de 50 como apontas, e fiquei pensando nisso tudo. Teu texto caiu como uma luva.
Vejo os vídeos das tradwives no tiktok e fico hipnotizada. Por um lado, esses vídeos mega produzidos e editados me transmitem certa paz, como se a vida daquelas mulheres fosse tão ilídica e pacífica, tão diferente da minha vida corrida. Mas logo me lembro de que são vídeos mega produzidos e editados e, ainda que seja verdade parte do que elas estão mostrando ali, penso em tudo que tiveram que abrir mão pra viver aquela vida. Não é pra mim.